segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

[Silver] Um escritor sem alma e um corpo fiel

Pegou o livro de capa dura, o qual não consegui reparar o nome no titulo, segurou firme com sua mão grossa e mal tratada uma ou duas dezena de folhas, rasgou com uma firmeza que até o frio daquele fim de tarde arrepiou-se, pegou o punhado de folhas e atirou ao fogo.
O fogo por sua vez devorou aquelas linhas de letras do papel faminto, dando mais um bocado de calor aquele homem que pouco se importava sobre o que tratava o livro, não expressava culpa alguma por tal ato e sim uma forte e preocupante duvida; o quanto mais aquele fogo duraria?
Esticou-se sem levantar-se e puxou o cobertor de retalhos cheio de terra para cima de si, de imediato escondeu-se, de forma que parecia mais uma camuflagem, daquele vento seco e gelado, mas muito atento ao fogo, pois o fogo não estava pra brincadeira e enquanto não devorasse aquele livro por inteiro, até a ultima linha não daria sossego ao ser que o alimentará, por um instante seu olhar mostrou não ser mais de um homem, não ser mais que um pedaço de gente morta que ainda respirava no canto de uma praça vazia, enquanto jogava ao fogo o ultimo punhado de cultura que tinha em mãos.

Aos poucos adormecia naquele frio cortante e logo por ele passou o povo que celebrou a vida, comeu a hóstia, bebeu o vinho, abraçou o próximo e pediu perdão na missa das seis.
Não parou nenhum humano perto dele pra saber se respirava, vai ver a alma daquele povo ficou ainda debaixo da coberta, debaixo de um céu estrelado, dançando e festejando mais um domingo de paz.

O livro tinha acabado, o fogo foi apagado por fome, o domingo chegava ao fim, segunda talvez tenha mais homem, tenha mais livro, ou não terá mais ninguém.

Segunda-feira encontraram um corpo de um homem na praça, ainda sentado de frente a cinzas ainda mornas de uma fogueira, enrolado em um coberto de retalhos. Morreu congelado só encontraram em seus braços um grosso exemplar do livro sagrado, o corpo foi retirado sem mais informação.

“Amanhã não tem praça, não tem brincadeira nem oração.
Acabou a cachaça, o pedaço de pão não vai ter mais confusão.
O cachorro ficou sem dono, a Maria sem chamego e o pedestre sem informação.
A divida foi quitada, não vai ter mais fumaça e nem mais curtição.
A cidade calada, sem nenhuma piada perdeu mais um ex-cidadão.
O nome não se tem, documento não resta o que resta é uma inscrição.
Salmo: 22.”